Quem acompanha os julgamentos dos Tribunais Administrativos Estaduais compreende que há forte resistência entre os julgadores em aplicarem a Teoria dos Precedentes Judiciais prevista na CPC, que obriga os juízes e tribunais a observarem as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores para manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente.
No âmbito do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), por exemplo, o que prevalece é que os julgadores somente estão vinculados a decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), dentre outras hipóteses específicas, uma vez que a legislação que disciplina o contencioso administrativo paulista não vincula o julgador aos precedentes judiciais firmados sob a sistemática de recursos repetitivos e repercussão geral firmados pelos Tribunais Superiores (artigo 28 da Lei 13.457/2009).
Por sinal, uma recente decisão da Câmara Superior do TIT manteve a cobrança de ITCMD pautada em lei ordinária (AIIM 4068013-7), mesmo diante de o STF ter pacificado a matéria no Tema 825, onde foi fixada a tese no sentido de que é vedado aos entes políticos estaduais instituírem o referido imposto sem previsão em lei complementar.
O voto vencedor (da relatora) pontuou que não se pode afastar a aplicação do artigo 28 da Lei 13.457/09 porque não houve a declaração de inconstitucionalidade, por meio de ADI, da lei ordinária que a acusação fiscal se baseou para cobrar o imposto em tela.
Esse julgamento contou com dois votos vencidos que merecem destaque.
O primeiro deles considerou que, apesar de a matéria ter sido pacificada no Tema 825 do STF, o entendimento firmado naquele leading case não poderia ser aplicado ao caso concreto porque os efeitos da decisão foram modulados no sentido de favorecer apenas os contribuintes com ações judiciais pendentes de julgamento, o que não se aplica aos processos pendentes no âmbito do contencioso administrativo.
O outro voto vencido entendeu pelo cancelamento da autuação fiscal justamente pelo fato de que a matéria foi pacificada pelo STF no Tema supramencionado. Para o julgador, é inadmissível aplicar a ressalva da modulação dos efeitos apenas para as ações judiciais, pois o contribuinte tem direito ao contraditório no processo administrativo antes de eventual ação judicial.
Sem maiores delongas, o questionamento que permanece é se essa falta de harmonia entre a jurisprudência administrativa e judicial continuará com a regulamentação da reforma tributária.
Pois bem.
É de conhecimento geral que o atual cenário do contencioso tributário brasileiro é de caos absoluto.
A PGFN divulgou dados que apontam que o estoque da Dívida Ativa da União atingiu, no ano de 2022, o valor de 2,7 trilhões de reais[1], o que representa 27% do PIB[2]. O CNJ divulgou o relatório que indica que o tempo médio de duração de processos de execução fiscal é de aproximadamente 10 anos, sendo que o congestionamento é de 90% (a cada 10 execuções fiscais ajuizadas, uma é extinta). Se considerarmos outros dados, como a quantidade de casos que estão sendo discutidos na esfera administrativa, incluindo os outros âmbitos (estadual e municipal), o resultado é absolutamente dramático.
São inúmeros os pontos que precisamos avançar para que esse cenário mude.
Com a aprovação da EC 132/2024, a verdade é que a tão sonhada reforma tributária já está embutida na Constituição Federal e sua regulamentação depende do aprimoramento da legislação que disciplina o contencioso administrativo tributário.
O que merece atenção é que o texto constitucional outorga a entes políticos estaduais e municipais, incluindo o Distrito Federal, a competência de criarem Comitê Gestor do IBS, onde terão poderes com características legislativas, executivas e julgadoras, dentre os quais se destaca o poder de “decidir o contencioso administrativo” (artigo 156-B, III). O texto constitucional também confere à lei complementar a competência de detalhar as regras de uniformização entre o IBS e a CBS para evitar o surgimento de decisões conflitantes e garantir maior simplicidade (artigo 156-B, §8).
O legislador complementar, portanto, terá a oportunidade de jogar uma pá de cal na complexidade do atual contencioso administrativo tributário, marcado por inúmeras normas de tribunais administrativos, cada qual com suas regras específicas, existentes nos 27 Estados, no Distrito Federal, e nos 5.565 Municípios existentes no território brasileiro, que geram incontáveis litígios e desgastam o funcionamento dos órgãos julgadores.
O que pode ajudar a minimizar tal complexidade é a previsão expressa em lei complementar no sentido de obrigar os órgãos julgadores do IBS e CBS a observarem os precedentes judiciais para manterem a jurisprudência administrativa e judicial estável, íntegra e coerente.
Ora, se determinada decisão proferida pelo STF sob a sistemática de repercussão geral, por exemplo, deve ser respeitada por todos os juízes e tribunais do Judiciário, não há motivos para os órgãos julgadores administrativos deixarem de segui-la, pois isso gera instabilidade e congestiona o contencioso tributário nos âmbitos administrativo e judicial.
Hoje, o CARF, órgão que será responsável por julgar as controvérsias envolvendo o CBS, está obrigado a seguir os precedentes judiciais definidos em repercussão geral e recursos repetitivos, o que evidencia que as discussões administrativas envolvendo esse tributo terão respaldo na jurisprudência judicial. Já o Comitê Gestor será o órgão que terá a competência julgar as discussões inerentes ao IBS (artigo 156-B, III) cujas regras do contencioso administrativo serão definidas por lei complementar, que poderá vincular esse órgão a respeitar as decisões judiciais definidas em repercussão geral ou recursos repetitivos.
Como se pode observar, está nas mãos do legislador complementar trazer os mecanismos de integração do contencioso administrativo entre os entes federativos para assegurar harmonia nos julgamentos do IBS e CBS, sendo essencial que essa discussão seja amadurecida no âmbito do Congresso Nacional para permitir que a jurisprudência (administrativa e judicial) tenha estabilidade e coerência.
Autor: Danilo Bertagnoli
Publicado na Revista JOTA